17/10/2020

"Shadows", a rever sempre

Talvez seja tudo uma questão de distância.
Física, antes do mais: é possível olhar as personagens, isto é, os actores de tão perto que não podemos deixar de sentir que a câmara pode tocar os rostos, os corpos, enredar-se em gestos e silêncios.
Narrativa, talvez: contar uma história não seria tanto colocar os actores, isto é, as personagens num determinado cenário, mas antes tratar os corpos como o primeiro e essencial cenário — como se tudo aquilo que está em volta fosse tão só um pressentimento (pré-sentimento?).
Simbólica: o mundo não existe numa escala fechada e normalizada, numa palavra, televisiva; cada vez que com ele produzimos em imagens e sons, inventamos a nossa própria escala, estabelecendo uma ordem que o reorganiza.
Dito de outro modo: há mais de seis décadas, nas convulsões das novas vagas e das produções independentes, Shadows (1959), de John Cassavetes, nasceu de um desejo de liberdade criativa que a passagem no tempo cristalizou e reforçou — a rever, sempre.

JL

04/09/2020

Tempo para reavaliar o tempo

Difícil ver esta imagem de John David Washington sem estabelecer algum laço, nem que seja puramente instintivo, com a "nossa" pandemia... E, no entanto, Tenet não é, de modo algum, uma reacção ao COVID-19 — o filme de Christopher Nolan, finalmente nas salas depois de vários adiamentos, foi mesmo um dos mais afectados pelas medidas sanitárias que impuseram o fecho dos mercados tradicionais de exibição. Acontece que, seguindo uma lógica que só pode fazer lembrar o emblemático Memento (2000), Nolan constrói uma narrativa em que o tempo, além de reversível, pode afectar a respiração, induzindo uma saga de sobrevivência cuja cronologia desafia todas as nossas certezas. Assim haja tempo para reavaliar o tempo.

JL

21/08/2020

A herança de "Número Dois"

Se a modernidade cinematográfica funciona como paisagem de todos os cruzamentos — temas, narrativas, técnicas —, Número Dois (1975), de Jean-Luc Godard, existe como objecto exemplar da sua dinâmica. Desde logo porque, algumas décadas antes de modas mais ou menos efémeras, Godard expunha a nova conjuntura de trabalho: a película clássica e as novas câmaras de video desenhavam um cenário em que, como sempre, se tratava de enfrentar as consequências da partícula "e" — não escolher uma coisa "ou" outra, mas filmar/viver com película "e" video.
Daí três fundamentais linhas de força:
1 — o tratamento do ecrã como tela aberta a todas as (re)composições;
2 — o envolvimento com o espaço familiar, (re)descobrindo a singularidade das crianças;
3 — a solidão primordial do criador, condenado a (re)pensar todo o seu trabalho.
Daí também a urgência afectiva desse trabalho, envolvendo a (re)invenção da relação homem/mulher. Daí, enfim, a importância de Anne-Marie Miéville no seu universo pessoal e criativo.

JL

19/08/2020

A propósito de "Honeyland"

Honeyland - A Terra do Mel é um filme da Macedónia do Norte que, além do mais, ficará na história dos Oscars pela sua dupla nomeação: para melhor documentário e melhor filme internacional. De qualquer modo, as suas singularidades provêm de algo bastante mais singelo: o acompanhamento "documental" da vida de uma mulher que, numa região muito pobre e inóspita, sobrevive através das suas colmeias, acompanhamento esse que, de modo discreto mas envolvente, nos vai situando numa dinâmica dramática que tem qualquer coisa de "ficção".
Onde acaba a evidência documental e começa o artifício narrativo?
Por uma vez, talvez valha a pena não nos apressarmos a responder — talvez possamos até não responder.  A realização de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov procura, mais que tudo, o carácter irredutível dos acontecimentos: os gestos de tratamento das colmeias, as compras num mercado de Skopje (capital da Macedónida do Norte), os diálogos com a mãe doente... De forma singela, sem transcendências nem cinismo, podemos redescobrir o cinema como colagem de eventos que se confundem com as imagens e os sons.

JL

18/08/2020

Filmes:
CRÓNICA DE UMA QUARENTENA NA PROVÍNCIA


* CRÓNICA DE UMA QUARENTENA NA PROVÍNCIA
de Carolina Lecoq

Uma quarentena pouco típica, com uma liberdade que parece contradizer a função da mesma. Apresento os meus dias na minha quinta, perto da cidade, mas longe suficiente para poder passear ver novas paisagens e ter diferentes experiências. Sempre ao meu lado, os meus pais foram grande inspiração para a realização deste filme. Uma melancolia trazida pela sucessão dos dias com um fim no que mostra ser o primeiro 25 de abril sem o povo unido na rua.

CL

Rossellini — uma citação de 1963

>>> Não é possível comparar a época actual com o século passado. No final do século XIX, estávamos ainda num mundo de tal riqueza, do ponto de vista artístico, que qualquer experiência podia ser útil. Mas hoje em dia, uma vez que essa riqueza já não existe, é preciso pelo menos restabelecer os elementos de compreensão.
A nossa evolução técnica não tem qualquer paralelo com o que se passou até ao presente. É preciso dizer que a humanidade construiu qualquer coisa de verdadeiramente extraordinário, já que tenho um profundo respeito pela técnica. Mas ela escapa-nos. Eis a verdadeira tragédia. Eis o grave problema. Os homens de agora não sabem fazer uso da própria civilização que construíram.

ROBERTO ROSSELLINI
Entrevista de Fereydoun Hoveyda e Eric Rohmer
Cahiers du Cinéma nº 145, Julho 1963

Filme:
DIÁRIOS CORONA


* DIÁRIOS CORONA
de Diogo Santos

Um diário de vários dias líquidos (sem início nem fim) durante o confinamento.

DS

Bresson — um fotograma

FUGIU UM CONDENADO À MORTE (1956)
Oa grandes planos de Robert Bresson existem através de uma paradoxal intensidade física: por um lado, são, de facto, (muito) grandes planos, dando-nos a ver elementos, literalmente, "maiores que a vida"; por outro lado, não funcionam como planos "de pormenor" que remeteriam para um todo necessariamente "maior". Em boa verdade, funcionam como um acontecimento total, uma pequena galáxia através da qual se exprime a vivência de alguém ou alguma coisa — um instante ou uma eternidade. Podemos, talvez, dizer que o plano existe como um pequeno teatro. Ou melhor, como um acontecimento específico do cinematógrafo.

JL

Filme:
ENSAIO POUCO CIENTÍFICO SOBRE O ISOLAMENTO


* ENSAIO POUCO CIENTÍFICO SOBRE O ISOLAMENTO
de Lara Varela

Uma pequena reflexão sobre a situação atual, na esperança de ajudar a ultrapassar este TEMPO difícil.

LA

12/08/2020

Cinema, Internet, Covid-19 & etc.

STROMBOLI (1949), de Roberto Rossellini
Sob o signo de Rossellini, eis uma reflexão de Eduardo Geada sobre as transformações do cinema — da produção à difusão, da organização da indústria aos hábitos do espectador — ocorridas ao longo das últimas três décadas. O título lança uma pergunta eminentemente cinéfila: "O Princípio do Fim?" — texto publicado pela Cinemateca, na sua 'Sala de Projecção'.

Filme:
YOUR HOLIDAY DESTINATION!


* YOUR HOLIDAY DESTINATION!
de Miguel Aido

Isolados em casa, começamos a pensar naquilo que não fazemos, ou onde não vamos. Onde não faremos férias, ou como não iremos descansar. Parece difícil ir a um hotel, por exemplo. Neste filme, eu tento ir a um hotel; tento ver a vista abrasadora da varanda; tento passar o tempo a relembrar alguns clássicos do cinema; tento relaxar.

MA

Real, realismo

A descoberta ou redescoberta de um filme como Let There Be Light (1946), de John Huston, não pode deixar de nos fazer pensar no poder muito real que as imagens (e os sons) podem ter no presente em que são produzidas.
Vale a pena uma breve memória: documentando o tratamento de veteranos da Segunda Guerra Mundial afectados por traumas decorrentes das situações de combate, o filme, embora uma encomenda oficial (emanada do U.S. Army Signal Corps), teria a sua difusão interdita pelo próprio Governo dos EUA; a sua amostragem pública só aconteceria a partir do início da década de 1980, vindo a ser integrado para preservação na Biblioteca do Congresso em 2010.
Dito de outro modo: há, ou pode haver, um "excesso" de realismo que o próprio real não tolera. Não é uma questão estritamente política, mas um dado ontológico — o cinema como acontecimento mais real que o próprio real. A avaliar, sempre, caso a caso.

JL

Filme:
DIA [21]


* DIA [21]
de Tiago F. Ferreira

Dia [21] é uma obra que procura representar a monotonia de um grupo de amigos próximos, proporcionada pelo confinamento à pandemia Covid-19. O que vemos, é mais um dia, dos muitos dias, em que este grupo se reuniu através da aplicação de videochamadas – Zoom. Este software, que durante essa época se tornou, até certo ponto, o meio de aproximação mais procurado pelas pessoas, quer em contexto académico ou profissional, funcionou de igual modo, muitas vezes, como apaziguamento dessa aproximação entre amigos e familiares. De forma a retratar o presente momento histórico, e com o impedimento de um contacto mais íntimo, desafiei o meu grupo de amigos a filmarem-se através das suas webcams durante as várias sessões de videochamada. De igual modo, numa tentativa de explorar a linguagem cinematográfica e outros modos da sua construção, pareceu-me relevante explorar esta forma de captação, onde cada um dos participantes é autor da sua própria imagem. Por consequência, este é um filme, onde a forma e o estilo são moldados perante os efeitos da situação filmada.

TFF

04/07/2020

"Da 5 Bloods", aqui e agora

Provavelmente, com a passagem dos anos, o filme Da 5 Bloods, de Spike Lee, ficará como símbolo do nosso estado das coisas: objecto de grande ecrã e produto de consumo caseiro, épico cinematográfico e ensaio contaminado por matrizes mediáticas, memória da América do tempo da guerra do Vietname e testemunho da América de Donald Trump. De acordo com a terminologia do próprio Spike Lee, uma "lição de história".

JL

Filme:
VOZES SOZINHAS


* VOZES SOZINHAS
de Tomás Ferreira

Num lar, dentro da organicidade de uma família, cada qual cria rotinas nas suas células de operação, os quartos, os escritórios, as salas de estar. Tornam-se, nesta dinâmica, blocos de isolamento para pessoas que vivem umas com as outras. No contexto da quarentena, estes comportamentos ascendem a um lugar curioso. A perpetuação do isolamento sobre o isolamento. Para alguém um quarto torna-se um mundo e o resto de uma casa vive à margem. Vozes parecem encontrar-se em espaços próximos, mas as pessoas estão em perpétuo desencontro. Nas suas rotinas, estão voltadas para a comunicação com o mundo lá fora, um esforço interior das suas vidas no exterior.

TF

Cinemas de bairro?

[blog: 'Restos de colecção']
Os efeitos drásticos do confinamento no mercado das salas de cinema estão à vista de todos. Em todo o caso, a noção de que as chamadas salas de bairro podem estar a lutar pela sua sobrevivência é algo que, no contexto português, parece uma questão surreal — essas salas têm sido metodicamente encerradas. Em França, algumas persistem e resistem (ainda que mal) — eis o testemunho de uma reportagem das RT France, nos primeiros dias de Maio.

  JL

Filme:
CITAÇÃO


* CITAÇÃO
de João Lopes

Em situação de confinamento, o cinema muda na nossa visão, percepção e pensamento. Que acontece quando nos apropriamos das imagens e sons de outros filmes?

JL

13/06/2020

A natureza, provavelmente

As discussões sobre o maior ou menor grau de verdade da película e do digital são intermináveis — e, sem dúvida, necessárias e motivadoras. Em qualquer caso, já compreendemos que não faz sentido, será mesmo profundamente retrógrado e paralisante, conduzir tais discussões visando a sagração de uma alternativa de filmagem (e a demonização da outra). Talvez seja até útil pensar que esse grau de verdade pode envolver um profundo equívoco, fechando-nos numa concepção da imagem que se esgota na sua capacidade de "reprodução". Como alternativa, talvez possamos supor que, quando mudamos de suporte técnico, o que muda é o próprio sistema imaginário — de visão, informação e narrativa — em que nos vamos inserir.
Pergunta de algibeira: que imagens são mais fiéis às singularidades da natureza? Ou ainda, resistindo a falsas evidências: o que é a natureza?
Este é um pequeno video promocional da Kodak, celebrando as qualidades específicas do Super 8 — foi posto a circular em 2017, pouco depois da marca ter lançado uma nova câmara de Super 8.

JL

Ser ou não ser (personagem de um ecrã)


Solidão e partilha. A dicotomia é inerente a muitas convulsões da humanidade, das nevroses individuais a certas celebrações de carácter religioso. No nosso tempo de confinamento, a sua expressão encontrou uma especialíssima via de expressão nos ecrãs — na sua proliferação e, sobretudo, na sua fragmentação. Dir-se-ia que, de uma maneira ou de outra, cada um de nós está, ou pode estar, em algum ecrã.
Vejam-se (e escutem-se) as muitas composições que têm sido interpretadas por músicos que não se limitam a respeitar as regras do chamado distanciamento social — em boa verdade, cada um deles está em sua casa, em diversas cidades, até mesmo em diferentes continentes.
Eis dois magníficos exemplos, até mesmo pela energia interpretativa e o apuro técnico que reflectem. No primeiro, em The Tonight Show (NBC), Sting, The Roots e Jimmy Fallon interpretam um clássico de The Police cujo título adquiriu uma ironia suplementar: Don't Stand So Close to Me; no segundo, a Orquestra Nacional de França (France Musique) propõe-nos a Valsa nº 2, de Dmitri Shostakovich, tema que adquiriu especial popularidade através da sua inclusão na banda sonora do filme final de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados (1999).

JL



Scorsese em confinamento

Digamo-lo do modo mais didáctico e também, à sua maneira, mais romântico: o desejo de cinema resiste a qualquer situação, estratégia ou imposição de confinamento. Lembremos os belíssimos filmes realizados por Jafar Panahi enquanto cidadão confinado em sua casa por decisão das autoridades do Irão. Um deles, aliás, possui um título que poderá simbolizar o labirinto em que se move esse obstinado desejo: Isto Não é um Filme (2011).
Pois bem, Martin Scorsese fez também do seu confinamento, não apenas uma hipótese, mas um objecto de cinema. Correspondendo a um convite da BBC, para o programa "Lockdown Culture", o cineasta de Taxi Driver concebeu uma breve reflexão sobre o que significa parar por causa da pandemia, num registo que tem tanto de esboço de auto-retrato como de breve ensaio sobre o conceito fílmico de citação — para lá dos grandes planos de Scorsese a dar conta da sua existência nos últimos tempos, vemos breves imagens de O Falso Culpado (1956), de Alfred Hitchcock, e Assassinos (1946), de Robert Siodmak [vlog de Peter Bradshaw com uma referência à curta de Scorsese].

JL

02/06/2020

03m 20s

A. O Super 8 não desapareceu do mundo do cinema. Deixou de ser um formato dito amador, para passar a existir como um recurso raro, mas emblemático, em que se cruzam a nostalgia e a experimentação, a herança do passado e, por vezes, alguma sugestão vanguardista. Criado em 1965 pela Kodak, a sua herança envolve uma certa ideia de democratização do acto de filmar, inseparável de uma sugestão de intimismo — mesmo nas suas aplicações mais prosaicas, o filme em Super 8 tem sempre como ponto de fuga uma marca de privacidade, uma hipótese de confessionalismo.

B. Na herança histórica, estética e também mitológica do Super 8 coexistem os mais diversos imaginários — do registo das férias para partilhar com familiares e amigos, até modos de experimentação mais ou menos marginais, porventura impossíveis de concretizar através das regras dos formatos profissionais. E há uma medida que ficou como uma espécie de duração ideal de um olhar breve e vulnerável, mas de inequívoca verdade individual: 03 minutos e 20 segundos — o tempo original das bobinas de Super 8 (tanto mais sedutoras quanto, quando olhamos para elas, a noção convencional de bobina não se aplica).

C. Quando se começou a instalar a inquietação dos primeiros sinais do COVID-19, apresentei aos alunos de Cinematografias V uma sugestão, sem programa definido, e também sem carácter obrigatório: talvez fosse interessante recuperar a herança do Super 8 (mesmo sem Super 8) e tentar fazer pequenos filmes "caseiros" que, de uma forma ou de outra, reflectissem este tempo de fechamento em que, por optimismo ou desespero, somos levados a contemplar o presente num misto de atenção e perplexidade, precisão e indecisão. O título do projecto — 03m 20s — não era uma obrigação, apenas um sinal da nossa possível e desejável contenção temporal e discursiva. Este blog é o espelho de tal projecto.

João Lopes