21/08/2020

A herança de "Número Dois"

Se a modernidade cinematográfica funciona como paisagem de todos os cruzamentos — temas, narrativas, técnicas —, Número Dois (1975), de Jean-Luc Godard, existe como objecto exemplar da sua dinâmica. Desde logo porque, algumas décadas antes de modas mais ou menos efémeras, Godard expunha a nova conjuntura de trabalho: a película clássica e as novas câmaras de video desenhavam um cenário em que, como sempre, se tratava de enfrentar as consequências da partícula "e" — não escolher uma coisa "ou" outra, mas filmar/viver com película "e" video.
Daí três fundamentais linhas de força:
1 — o tratamento do ecrã como tela aberta a todas as (re)composições;
2 — o envolvimento com o espaço familiar, (re)descobrindo a singularidade das crianças;
3 — a solidão primordial do criador, condenado a (re)pensar todo o seu trabalho.
Daí também a urgência afectiva desse trabalho, envolvendo a (re)invenção da relação homem/mulher. Daí, enfim, a importância de Anne-Marie Miéville no seu universo pessoal e criativo.

JL

19/08/2020

A propósito de "Honeyland"

Honeyland - A Terra do Mel é um filme da Macedónia do Norte que, além do mais, ficará na história dos Oscars pela sua dupla nomeação: para melhor documentário e melhor filme internacional. De qualquer modo, as suas singularidades provêm de algo bastante mais singelo: o acompanhamento "documental" da vida de uma mulher que, numa região muito pobre e inóspita, sobrevive através das suas colmeias, acompanhamento esse que, de modo discreto mas envolvente, nos vai situando numa dinâmica dramática que tem qualquer coisa de "ficção".
Onde acaba a evidência documental e começa o artifício narrativo?
Por uma vez, talvez valha a pena não nos apressarmos a responder — talvez possamos até não responder.  A realização de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov procura, mais que tudo, o carácter irredutível dos acontecimentos: os gestos de tratamento das colmeias, as compras num mercado de Skopje (capital da Macedónida do Norte), os diálogos com a mãe doente... De forma singela, sem transcendências nem cinismo, podemos redescobrir o cinema como colagem de eventos que se confundem com as imagens e os sons.

JL

18/08/2020

Filmes:
CRÓNICA DE UMA QUARENTENA NA PROVÍNCIA


* CRÓNICA DE UMA QUARENTENA NA PROVÍNCIA
de Carolina Lecoq

Uma quarentena pouco típica, com uma liberdade que parece contradizer a função da mesma. Apresento os meus dias na minha quinta, perto da cidade, mas longe suficiente para poder passear ver novas paisagens e ter diferentes experiências. Sempre ao meu lado, os meus pais foram grande inspiração para a realização deste filme. Uma melancolia trazida pela sucessão dos dias com um fim no que mostra ser o primeiro 25 de abril sem o povo unido na rua.

CL

Rossellini — uma citação de 1963

>>> Não é possível comparar a época actual com o século passado. No final do século XIX, estávamos ainda num mundo de tal riqueza, do ponto de vista artístico, que qualquer experiência podia ser útil. Mas hoje em dia, uma vez que essa riqueza já não existe, é preciso pelo menos restabelecer os elementos de compreensão.
A nossa evolução técnica não tem qualquer paralelo com o que se passou até ao presente. É preciso dizer que a humanidade construiu qualquer coisa de verdadeiramente extraordinário, já que tenho um profundo respeito pela técnica. Mas ela escapa-nos. Eis a verdadeira tragédia. Eis o grave problema. Os homens de agora não sabem fazer uso da própria civilização que construíram.

ROBERTO ROSSELLINI
Entrevista de Fereydoun Hoveyda e Eric Rohmer
Cahiers du Cinéma nº 145, Julho 1963

Filme:
DIÁRIOS CORONA


* DIÁRIOS CORONA
de Diogo Santos

Um diário de vários dias líquidos (sem início nem fim) durante o confinamento.

DS

Bresson — um fotograma

FUGIU UM CONDENADO À MORTE (1956)
Oa grandes planos de Robert Bresson existem através de uma paradoxal intensidade física: por um lado, são, de facto, (muito) grandes planos, dando-nos a ver elementos, literalmente, "maiores que a vida"; por outro lado, não funcionam como planos "de pormenor" que remeteriam para um todo necessariamente "maior". Em boa verdade, funcionam como um acontecimento total, uma pequena galáxia através da qual se exprime a vivência de alguém ou alguma coisa — um instante ou uma eternidade. Podemos, talvez, dizer que o plano existe como um pequeno teatro. Ou melhor, como um acontecimento específico do cinematógrafo.

JL

Filme:
ENSAIO POUCO CIENTÍFICO SOBRE O ISOLAMENTO


* ENSAIO POUCO CIENTÍFICO SOBRE O ISOLAMENTO
de Lara Varela

Uma pequena reflexão sobre a situação atual, na esperança de ajudar a ultrapassar este TEMPO difícil.

LA

12/08/2020

Cinema, Internet, Covid-19 & etc.

STROMBOLI (1949), de Roberto Rossellini
Sob o signo de Rossellini, eis uma reflexão de Eduardo Geada sobre as transformações do cinema — da produção à difusão, da organização da indústria aos hábitos do espectador — ocorridas ao longo das últimas três décadas. O título lança uma pergunta eminentemente cinéfila: "O Princípio do Fim?" — texto publicado pela Cinemateca, na sua 'Sala de Projecção'.

Filme:
YOUR HOLIDAY DESTINATION!


* YOUR HOLIDAY DESTINATION!
de Miguel Aido

Isolados em casa, começamos a pensar naquilo que não fazemos, ou onde não vamos. Onde não faremos férias, ou como não iremos descansar. Parece difícil ir a um hotel, por exemplo. Neste filme, eu tento ir a um hotel; tento ver a vista abrasadora da varanda; tento passar o tempo a relembrar alguns clássicos do cinema; tento relaxar.

MA

Real, realismo

A descoberta ou redescoberta de um filme como Let There Be Light (1946), de John Huston, não pode deixar de nos fazer pensar no poder muito real que as imagens (e os sons) podem ter no presente em que são produzidas.
Vale a pena uma breve memória: documentando o tratamento de veteranos da Segunda Guerra Mundial afectados por traumas decorrentes das situações de combate, o filme, embora uma encomenda oficial (emanada do U.S. Army Signal Corps), teria a sua difusão interdita pelo próprio Governo dos EUA; a sua amostragem pública só aconteceria a partir do início da década de 1980, vindo a ser integrado para preservação na Biblioteca do Congresso em 2010.
Dito de outro modo: há, ou pode haver, um "excesso" de realismo que o próprio real não tolera. Não é uma questão estritamente política, mas um dado ontológico — o cinema como acontecimento mais real que o próprio real. A avaliar, sempre, caso a caso.

JL

Filme:
DIA [21]


* DIA [21]
de Tiago F. Ferreira

Dia [21] é uma obra que procura representar a monotonia de um grupo de amigos próximos, proporcionada pelo confinamento à pandemia Covid-19. O que vemos, é mais um dia, dos muitos dias, em que este grupo se reuniu através da aplicação de videochamadas – Zoom. Este software, que durante essa época se tornou, até certo ponto, o meio de aproximação mais procurado pelas pessoas, quer em contexto académico ou profissional, funcionou de igual modo, muitas vezes, como apaziguamento dessa aproximação entre amigos e familiares. De forma a retratar o presente momento histórico, e com o impedimento de um contacto mais íntimo, desafiei o meu grupo de amigos a filmarem-se através das suas webcams durante as várias sessões de videochamada. De igual modo, numa tentativa de explorar a linguagem cinematográfica e outros modos da sua construção, pareceu-me relevante explorar esta forma de captação, onde cada um dos participantes é autor da sua própria imagem. Por consequência, este é um filme, onde a forma e o estilo são moldados perante os efeitos da situação filmada.

TFF