21/08/2020

A herança de "Número Dois"

Se a modernidade cinematográfica funciona como paisagem de todos os cruzamentos — temas, narrativas, técnicas —, Número Dois (1975), de Jean-Luc Godard, existe como objecto exemplar da sua dinâmica. Desde logo porque, algumas décadas antes de modas mais ou menos efémeras, Godard expunha a nova conjuntura de trabalho: a película clássica e as novas câmaras de video desenhavam um cenário em que, como sempre, se tratava de enfrentar as consequências da partícula "e" — não escolher uma coisa "ou" outra, mas filmar/viver com película "e" video.
Daí três fundamentais linhas de força:
1 — o tratamento do ecrã como tela aberta a todas as (re)composições;
2 — o envolvimento com o espaço familiar, (re)descobrindo a singularidade das crianças;
3 — a solidão primordial do criador, condenado a (re)pensar todo o seu trabalho.
Daí também a urgência afectiva desse trabalho, envolvendo a (re)invenção da relação homem/mulher. Daí, enfim, a importância de Anne-Marie Miéville no seu universo pessoal e criativo.

JL