13/06/2020

A natureza, provavelmente

As discussões sobre o maior ou menor grau de verdade da película e do digital são intermináveis — e, sem dúvida, necessárias e motivadoras. Em qualquer caso, já compreendemos que não faz sentido, será mesmo profundamente retrógrado e paralisante, conduzir tais discussões visando a sagração de uma alternativa de filmagem (e a demonização da outra). Talvez seja até útil pensar que esse grau de verdade pode envolver um profundo equívoco, fechando-nos numa concepção da imagem que se esgota na sua capacidade de "reprodução". Como alternativa, talvez possamos supor que, quando mudamos de suporte técnico, o que muda é o próprio sistema imaginário — de visão, informação e narrativa — em que nos vamos inserir.
Pergunta de algibeira: que imagens são mais fiéis às singularidades da natureza? Ou ainda, resistindo a falsas evidências: o que é a natureza?
Este é um pequeno video promocional da Kodak, celebrando as qualidades específicas do Super 8 — foi posto a circular em 2017, pouco depois da marca ter lançado uma nova câmara de Super 8.

JL

Ser ou não ser (personagem de um ecrã)


Solidão e partilha. A dicotomia é inerente a muitas convulsões da humanidade, das nevroses individuais a certas celebrações de carácter religioso. No nosso tempo de confinamento, a sua expressão encontrou uma especialíssima via de expressão nos ecrãs — na sua proliferação e, sobretudo, na sua fragmentação. Dir-se-ia que, de uma maneira ou de outra, cada um de nós está, ou pode estar, em algum ecrã.
Vejam-se (e escutem-se) as muitas composições que têm sido interpretadas por músicos que não se limitam a respeitar as regras do chamado distanciamento social — em boa verdade, cada um deles está em sua casa, em diversas cidades, até mesmo em diferentes continentes.
Eis dois magníficos exemplos, até mesmo pela energia interpretativa e o apuro técnico que reflectem. No primeiro, em The Tonight Show (NBC), Sting, The Roots e Jimmy Fallon interpretam um clássico de The Police cujo título adquiriu uma ironia suplementar: Don't Stand So Close to Me; no segundo, a Orquestra Nacional de França (France Musique) propõe-nos a Valsa nº 2, de Dmitri Shostakovich, tema que adquiriu especial popularidade através da sua inclusão na banda sonora do filme final de Stanley Kubrick, De Olhos Bem Fechados (1999).

JL



Scorsese em confinamento

Digamo-lo do modo mais didáctico e também, à sua maneira, mais romântico: o desejo de cinema resiste a qualquer situação, estratégia ou imposição de confinamento. Lembremos os belíssimos filmes realizados por Jafar Panahi enquanto cidadão confinado em sua casa por decisão das autoridades do Irão. Um deles, aliás, possui um título que poderá simbolizar o labirinto em que se move esse obstinado desejo: Isto Não é um Filme (2011).
Pois bem, Martin Scorsese fez também do seu confinamento, não apenas uma hipótese, mas um objecto de cinema. Correspondendo a um convite da BBC, para o programa "Lockdown Culture", o cineasta de Taxi Driver concebeu uma breve reflexão sobre o que significa parar por causa da pandemia, num registo que tem tanto de esboço de auto-retrato como de breve ensaio sobre o conceito fílmico de citação — para lá dos grandes planos de Scorsese a dar conta da sua existência nos últimos tempos, vemos breves imagens de O Falso Culpado (1956), de Alfred Hitchcock, e Assassinos (1946), de Robert Siodmak [vlog de Peter Bradshaw com uma referência à curta de Scorsese].

JL

02/06/2020

03m 20s

A. O Super 8 não desapareceu do mundo do cinema. Deixou de ser um formato dito amador, para passar a existir como um recurso raro, mas emblemático, em que se cruzam a nostalgia e a experimentação, a herança do passado e, por vezes, alguma sugestão vanguardista. Criado em 1965 pela Kodak, a sua herança envolve uma certa ideia de democratização do acto de filmar, inseparável de uma sugestão de intimismo — mesmo nas suas aplicações mais prosaicas, o filme em Super 8 tem sempre como ponto de fuga uma marca de privacidade, uma hipótese de confessionalismo.

B. Na herança histórica, estética e também mitológica do Super 8 coexistem os mais diversos imaginários — do registo das férias para partilhar com familiares e amigos, até modos de experimentação mais ou menos marginais, porventura impossíveis de concretizar através das regras dos formatos profissionais. E há uma medida que ficou como uma espécie de duração ideal de um olhar breve e vulnerável, mas de inequívoca verdade individual: 03 minutos e 20 segundos — o tempo original das bobinas de Super 8 (tanto mais sedutoras quanto, quando olhamos para elas, a noção convencional de bobina não se aplica).

C. Quando se começou a instalar a inquietação dos primeiros sinais do COVID-19, apresentei aos alunos de Cinematografias V uma sugestão, sem programa definido, e também sem carácter obrigatório: talvez fosse interessante recuperar a herança do Super 8 (mesmo sem Super 8) e tentar fazer pequenos filmes "caseiros" que, de uma forma ou de outra, reflectissem este tempo de fechamento em que, por optimismo ou desespero, somos levados a contemplar o presente num misto de atenção e perplexidade, precisão e indecisão. O título do projecto — 03m 20s — não era uma obrigação, apenas um sinal da nossa possível e desejável contenção temporal e discursiva. Este blog é o espelho de tal projecto.

João Lopes