02/07/2021

O verbo "documentar"

Subitamente, reencontramos uma prática — e, mais do que isso, um desejo — de reportagem que não coincide com as rotinas quotidianas do aparelho televisivo.
Para filmar Colectiv (subtítulo português: "Um Caso de Corrupção"], o realizador romeno Alexander Nanau seguiu os trabalhos de uma equipa de jornalistas a investigar a tragédia da discoteca Colectiv, em Bucareste. Não se trata, assim, de ilustrar uma verdade pré-determinada, muito menos determinista, antes de integrar o espaço de pesquisa, inventariação e reflexão que acontece em nome da procura da verdade — deste modo, o exercício documental não é estranho aos labirintos da interrogação filosófica.
Ou ainda: mais do que o objecto "documentário", importa valorizar o verbo "documentar".

JL
 

17/10/2020

"Shadows", a rever sempre

Talvez seja tudo uma questão de distância.
Física, antes do mais: é possível olhar as personagens, isto é, os actores de tão perto que não podemos deixar de sentir que a câmara pode tocar os rostos, os corpos, enredar-se em gestos e silêncios.
Narrativa, talvez: contar uma história não seria tanto colocar os actores, isto é, as personagens num determinado cenário, mas antes tratar os corpos como o primeiro e essencial cenário — como se tudo aquilo que está em volta fosse tão só um pressentimento (pré-sentimento?).
Simbólica: o mundo não existe numa escala fechada e normalizada, numa palavra, televisiva; cada vez que com ele produzimos em imagens e sons, inventamos a nossa própria escala, estabelecendo uma ordem que o reorganiza.
Dito de outro modo: há mais de seis décadas, nas convulsões das novas vagas e das produções independentes, Shadows (1959), de John Cassavetes, nasceu de um desejo de liberdade criativa que a passagem no tempo cristalizou e reforçou — a rever, sempre.

JL

04/09/2020

Tempo para reavaliar o tempo

Difícil ver esta imagem de John David Washington sem estabelecer algum laço, nem que seja puramente instintivo, com a "nossa" pandemia... E, no entanto, Tenet não é, de modo algum, uma reacção ao COVID-19 — o filme de Christopher Nolan, finalmente nas salas depois de vários adiamentos, foi mesmo um dos mais afectados pelas medidas sanitárias que impuseram o fecho dos mercados tradicionais de exibição. Acontece que, seguindo uma lógica que só pode fazer lembrar o emblemático Memento (2000), Nolan constrói uma narrativa em que o tempo, além de reversível, pode afectar a respiração, induzindo uma saga de sobrevivência cuja cronologia desafia todas as nossas certezas. Assim haja tempo para reavaliar o tempo.

JL

21/08/2020

A herança de "Número Dois"

Se a modernidade cinematográfica funciona como paisagem de todos os cruzamentos — temas, narrativas, técnicas —, Número Dois (1975), de Jean-Luc Godard, existe como objecto exemplar da sua dinâmica. Desde logo porque, algumas décadas antes de modas mais ou menos efémeras, Godard expunha a nova conjuntura de trabalho: a película clássica e as novas câmaras de video desenhavam um cenário em que, como sempre, se tratava de enfrentar as consequências da partícula "e" — não escolher uma coisa "ou" outra, mas filmar/viver com película "e" video.
Daí três fundamentais linhas de força:
1 — o tratamento do ecrã como tela aberta a todas as (re)composições;
2 — o envolvimento com o espaço familiar, (re)descobrindo a singularidade das crianças;
3 — a solidão primordial do criador, condenado a (re)pensar todo o seu trabalho.
Daí também a urgência afectiva desse trabalho, envolvendo a (re)invenção da relação homem/mulher. Daí, enfim, a importância de Anne-Marie Miéville no seu universo pessoal e criativo.

JL

19/08/2020

A propósito de "Honeyland"

Honeyland - A Terra do Mel é um filme da Macedónia do Norte que, além do mais, ficará na história dos Oscars pela sua dupla nomeação: para melhor documentário e melhor filme internacional. De qualquer modo, as suas singularidades provêm de algo bastante mais singelo: o acompanhamento "documental" da vida de uma mulher que, numa região muito pobre e inóspita, sobrevive através das suas colmeias, acompanhamento esse que, de modo discreto mas envolvente, nos vai situando numa dinâmica dramática que tem qualquer coisa de "ficção".
Onde acaba a evidência documental e começa o artifício narrativo?
Por uma vez, talvez valha a pena não nos apressarmos a responder — talvez possamos até não responder.  A realização de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov procura, mais que tudo, o carácter irredutível dos acontecimentos: os gestos de tratamento das colmeias, as compras num mercado de Skopje (capital da Macedónida do Norte), os diálogos com a mãe doente... De forma singela, sem transcendências nem cinismo, podemos redescobrir o cinema como colagem de eventos que se confundem com as imagens e os sons.

JL

18/08/2020

Filmes:
CRÓNICA DE UMA QUARENTENA NA PROVÍNCIA


* CRÓNICA DE UMA QUARENTENA NA PROVÍNCIA
de Carolina Lecoq

Uma quarentena pouco típica, com uma liberdade que parece contradizer a função da mesma. Apresento os meus dias na minha quinta, perto da cidade, mas longe suficiente para poder passear ver novas paisagens e ter diferentes experiências. Sempre ao meu lado, os meus pais foram grande inspiração para a realização deste filme. Uma melancolia trazida pela sucessão dos dias com um fim no que mostra ser o primeiro 25 de abril sem o povo unido na rua.

CL

Rossellini — uma citação de 1963

>>> Não é possível comparar a época actual com o século passado. No final do século XIX, estávamos ainda num mundo de tal riqueza, do ponto de vista artístico, que qualquer experiência podia ser útil. Mas hoje em dia, uma vez que essa riqueza já não existe, é preciso pelo menos restabelecer os elementos de compreensão.
A nossa evolução técnica não tem qualquer paralelo com o que se passou até ao presente. É preciso dizer que a humanidade construiu qualquer coisa de verdadeiramente extraordinário, já que tenho um profundo respeito pela técnica. Mas ela escapa-nos. Eis a verdadeira tragédia. Eis o grave problema. Os homens de agora não sabem fazer uso da própria civilização que construíram.

ROBERTO ROSSELLINI
Entrevista de Fereydoun Hoveyda e Eric Rohmer
Cahiers du Cinéma nº 145, Julho 1963

Filme:
DIÁRIOS CORONA


* DIÁRIOS CORONA
de Diogo Santos

Um diário de vários dias líquidos (sem início nem fim) durante o confinamento.

DS

Bresson — um fotograma

FUGIU UM CONDENADO À MORTE (1956)
Oa grandes planos de Robert Bresson existem através de uma paradoxal intensidade física: por um lado, são, de facto, (muito) grandes planos, dando-nos a ver elementos, literalmente, "maiores que a vida"; por outro lado, não funcionam como planos "de pormenor" que remeteriam para um todo necessariamente "maior". Em boa verdade, funcionam como um acontecimento total, uma pequena galáxia através da qual se exprime a vivência de alguém ou alguma coisa — um instante ou uma eternidade. Podemos, talvez, dizer que o plano existe como um pequeno teatro. Ou melhor, como um acontecimento específico do cinematógrafo.

JL

Filme:
ENSAIO POUCO CIENTÍFICO SOBRE O ISOLAMENTO


* ENSAIO POUCO CIENTÍFICO SOBRE O ISOLAMENTO
de Lara Varela

Uma pequena reflexão sobre a situação atual, na esperança de ajudar a ultrapassar este TEMPO difícil.

LA